Todos os Cavaleiros da Ordem Militar e Hospitalar de São Lázaro de Jerusalém prestam juramento de acolher aos mais necessitados, principalmente os leprosos. Em nossos dias, com o controle da lepra em nosso país (que já nem chamamos de lepra, preferimos chamar "hanseníase", como se isso diminuísse o problema) somos levados a imaginar que a lepra já não mais existe.
Ocorre que, para o espanto de muitos, a lepra ainda dizima centenas de vidas na África e no Oriente, em países com menor desenvolvimento, onde o terrível mal ainda é tão letal quanto o era nos tempos de Cristo.
O desafio que proponho ao Grão Priorado do Brasil, é o de enviar auxílio, principalmente o financeiro, ao leprosário localizado na periferia da Cidade do Cairo, capital do Egito, e de cuja história hoje me ocupo de transmitir. Lembremo-nos do que a Cruz Verde de nossos mantos nos quer transmitir: O Cuidado com a Terra Santa, o Cuidado com a Defesa da Santa Igreja, e o Cuidado com os Leprosos.
NOSSO IRMÃO LEPROSO
Uma experiência de solidariedade inter-religiosa
Texto: Anna Pozzi, sendo veículado à Revista Mundo e Missão.
"Este é o meu Lázaro", diz a irmã Maria Pia ao se aproximar de uma porta em frangalhos. Ao abri-la, parece entrar em uma tumba. No chão, um homem consumido pela lepra e pela fome. Um pequeno monte de ossos, donde sobressaem tocos de mãos e pés. Uma tira de pano envolve o rosto descarnado, iluminado por um raio de luz, filtrado pela janela, que lhe imprimia sombras profundas entre rugas escavadas. À volta, sujeira e desolação. Entretanto, aqui ele está melhor do que no antigo barraco de papelão e lata, expulso pelos parentes. É um lugar onde pode se deitar, esconder-se, abandonar-se dos demais, feridos como ele por esta terrível doença que mutila corpos e a dignidade.
Estamos no leprosário do Cairo, a 45 quilômetros da capital, em pleno deserto, onde algumas Irmãs se dedicam com paixão junto aos que estão à margem dos marginalizados.
O Furgão
Maria Pia, Missionária Comboniana, amanhece em cima de um furgão, dirigido por um motorista copta católico, uma minoria da minoria cristã no Egito. Primeira parada: de uma vila próxima do centro sai uma jovem mulher alemã, com macacão de jeans e véu na cabeça. É a segunda esposa de um islamita egípcio, também ela convertida ao islã. Segunda parada: no quarto andar de um edifício da periferia vivem algumas Irmãs Combonianas. No prédio em frente, as Elisabetinas. Todas pulam para a carroceria do furgão, saúdam-se e começam a rezar o Terço. O motorista acelera com a estranha e variada carga - inter-religiosa, intercongregacional, internacional - rumo à periferia, procurando chegar antes que o tráfego do Cairo fique infernal.
Leprosário
Em local perdido e inóspito, o governo construiu uma vila só para as vítimas da lepra. Irmã Gian Vittoria, Elisabetina, aí trabalha há 26 anos. Irmã Hélène, religiosa de São Vicente de Paulo, havia descoberto o local em 1980. "Na época as condições eram penosíssimas - relembra Maria Pia, veterana no Egito desde 1962. De longe já vinha o cheiro fétido, porque os doentes eram abandonados às suas terríveis úlceras. Eram-lhes jogadas algumas bandagens e eles deviam se 'virar'. O local era completamente isolado e esquecidos por todos".
Até hoje está isolado, mas não abandonado. "Irmã Hélène - explica a Irmã Maria Pia - lançou um apelo a diversas congregações. Obteve resposta das Combonianas e das Elisabetinas. Uma porta e este mundo de dor".
A porta se abre em dois sentidos. Para o local que ainda hoje impressiona, não apenas pelas marcas horríveis que a doença imprime nos corpos das pessoas, mas também pelo estigma de vergonha que infringe nelas, reprovadas, repelidas, atiradas à margem da sociedade, um deserto onde não há nada, exceto a dedicação das Irmãs. Graças a elas, há também, ao lado do hospital, uma escola maternal e um pouco de humanidade e vizinhança para famílias inteiras, forçadas a viver longe de tudo e de todos.
Solidariedade
"Hoje - diz Irmã Maria Pia - graças à doação de alguns muçulmanos, alas do hospital foram reestruturadas. E há voluntários. Uma farmacêutica aposentada de 76 anos, vem semanalmente lavar os doentes e traz bolachas a cada um".
O singelo hospital é hoje um lugar digno. A senhora alemã, voluntária há anos, torna-o mais agradável cuidadndo de um jardinzinho com a ajuda de pequeno time de hansenianos. As Irmãs, por sua vez, ocupam-se de outras funções: oftalmologia, ortopedia, otorrinolaringologia, radiologia, farmácia, laboratório de análises, e de três salas de cirurgia. Hoje o hospital atende 150 homens, alguns dos quais vivem com a família na vila em anexo; outro tanto de mulheres, com uma centena de crianças. A Caritas administra um centro social.
Esperança, apesar de tudo
A Religiosa para na frente de uma casinha da vila e saúda um casal recém-casado. São jovens e estão felizes. Agradecem pelo presente de alguns móveis, que a custo entraram no quarto minúsculo. Afáveis, não levam sinais visíveis da lepra que os infectara. Pensam no futuro, ainda que a vida conjugal tenha se iniciado em um lugar estigmatizado.
Irmã Maria Pia sorri e diz que "nada mais é como no passado". Vagueando para lá, não é fácil acreditar nela, pois o peso daquele passado continua a marcar duramente também as perspectivas do futuro e é custoso demais lutar contra essa doença e contra os prejuízos que ela deixou.
Na ala masculina, um belo rapaz saúda a Irmã. Sorri e é gentil, apesar da história dramática. "Descobri que estava infectado enquanto frequentava a faculdade - relata. Foi um choque terrível. Estou me tratando e dou uma mão a outros doentes. Além disso - disfarça num sorriso - casei há pouco". "Sua esposa - acrescenta a Irmã, a certa distância - é também uma ex-doente de lepra. Casaram-se sozinhos, já que ninguém aceitou uni-los. Até as famílias os abandonaram. O rapaz está melhor, mas ainda necessita de suporte psicológico". "No Egito há sempre novos casos - confirma a Religiosa -, inclusive entre os jovens. E mesmo restabelecidos, não voltam para casa. A família não os aceita mais, repele-os".
Sinais de humanidade
Na ala feminina, há uma jovem que aqui chegou aos sete anos. Órfã de mãe, o pai casou-se com uma mulher que não a aceitava. Ao descobrirem nela a lepra, isolaram-na debaixo de uma escada. "Quando chegou - relembra a Irmã -, isolava-se e chorava sem cessar, até receber o carinho de outra infectada, que a ela se achegou como se fosse a mãe. Ainda hoje estão juntas".
Um senhor está aqui há 48 anos. Outro, sem pernas e com apenas um olho, viu nascer seus quatro filhos, todos sadios, assim como a mulher. Um pai, com rosto desfigurado e quase sem dentes, mostra-nos com orgulho um filhinho recém-nascido. Ao lado, uma garotinha leva na cabeça um feixe de lenha para a mãe que já não tem as mãos. Irmã Maria Pia olha aquilo com benevolência e repete, com seu sorriso espontâneo e desarmado, que "aqui não é mais como antes".
Estamos no leprosário do Cairo, a 45 quilômetros da capital, em pleno deserto, onde algumas Irmãs se dedicam com paixão junto aos que estão à margem dos marginalizados.
O Furgão
Maria Pia, Missionária Comboniana, amanhece em cima de um furgão, dirigido por um motorista copta católico, uma minoria da minoria cristã no Egito. Primeira parada: de uma vila próxima do centro sai uma jovem mulher alemã, com macacão de jeans e véu na cabeça. É a segunda esposa de um islamita egípcio, também ela convertida ao islã. Segunda parada: no quarto andar de um edifício da periferia vivem algumas Irmãs Combonianas. No prédio em frente, as Elisabetinas. Todas pulam para a carroceria do furgão, saúdam-se e começam a rezar o Terço. O motorista acelera com a estranha e variada carga - inter-religiosa, intercongregacional, internacional - rumo à periferia, procurando chegar antes que o tráfego do Cairo fique infernal.
Leprosário
Em local perdido e inóspito, o governo construiu uma vila só para as vítimas da lepra. Irmã Gian Vittoria, Elisabetina, aí trabalha há 26 anos. Irmã Hélène, religiosa de São Vicente de Paulo, havia descoberto o local em 1980. "Na época as condições eram penosíssimas - relembra Maria Pia, veterana no Egito desde 1962. De longe já vinha o cheiro fétido, porque os doentes eram abandonados às suas terríveis úlceras. Eram-lhes jogadas algumas bandagens e eles deviam se 'virar'. O local era completamente isolado e esquecidos por todos".
Até hoje está isolado, mas não abandonado. "Irmã Hélène - explica a Irmã Maria Pia - lançou um apelo a diversas congregações. Obteve resposta das Combonianas e das Elisabetinas. Uma porta e este mundo de dor".
A porta se abre em dois sentidos. Para o local que ainda hoje impressiona, não apenas pelas marcas horríveis que a doença imprime nos corpos das pessoas, mas também pelo estigma de vergonha que infringe nelas, reprovadas, repelidas, atiradas à margem da sociedade, um deserto onde não há nada, exceto a dedicação das Irmãs. Graças a elas, há também, ao lado do hospital, uma escola maternal e um pouco de humanidade e vizinhança para famílias inteiras, forçadas a viver longe de tudo e de todos.
Solidariedade
"Hoje - diz Irmã Maria Pia - graças à doação de alguns muçulmanos, alas do hospital foram reestruturadas. E há voluntários. Uma farmacêutica aposentada de 76 anos, vem semanalmente lavar os doentes e traz bolachas a cada um".
O singelo hospital é hoje um lugar digno. A senhora alemã, voluntária há anos, torna-o mais agradável cuidadndo de um jardinzinho com a ajuda de pequeno time de hansenianos. As Irmãs, por sua vez, ocupam-se de outras funções: oftalmologia, ortopedia, otorrinolaringologia, radiologia, farmácia, laboratório de análises, e de três salas de cirurgia. Hoje o hospital atende 150 homens, alguns dos quais vivem com a família na vila em anexo; outro tanto de mulheres, com uma centena de crianças. A Caritas administra um centro social.
Esperança, apesar de tudo
A Religiosa para na frente de uma casinha da vila e saúda um casal recém-casado. São jovens e estão felizes. Agradecem pelo presente de alguns móveis, que a custo entraram no quarto minúsculo. Afáveis, não levam sinais visíveis da lepra que os infectara. Pensam no futuro, ainda que a vida conjugal tenha se iniciado em um lugar estigmatizado.
Irmã Maria Pia sorri e diz que "nada mais é como no passado". Vagueando para lá, não é fácil acreditar nela, pois o peso daquele passado continua a marcar duramente também as perspectivas do futuro e é custoso demais lutar contra essa doença e contra os prejuízos que ela deixou.
Na ala masculina, um belo rapaz saúda a Irmã. Sorri e é gentil, apesar da história dramática. "Descobri que estava infectado enquanto frequentava a faculdade - relata. Foi um choque terrível. Estou me tratando e dou uma mão a outros doentes. Além disso - disfarça num sorriso - casei há pouco". "Sua esposa - acrescenta a Irmã, a certa distância - é também uma ex-doente de lepra. Casaram-se sozinhos, já que ninguém aceitou uni-los. Até as famílias os abandonaram. O rapaz está melhor, mas ainda necessita de suporte psicológico". "No Egito há sempre novos casos - confirma a Religiosa -, inclusive entre os jovens. E mesmo restabelecidos, não voltam para casa. A família não os aceita mais, repele-os".
Sinais de humanidade
Na ala feminina, há uma jovem que aqui chegou aos sete anos. Órfã de mãe, o pai casou-se com uma mulher que não a aceitava. Ao descobrirem nela a lepra, isolaram-na debaixo de uma escada. "Quando chegou - relembra a Irmã -, isolava-se e chorava sem cessar, até receber o carinho de outra infectada, que a ela se achegou como se fosse a mãe. Ainda hoje estão juntas".
Um senhor está aqui há 48 anos. Outro, sem pernas e com apenas um olho, viu nascer seus quatro filhos, todos sadios, assim como a mulher. Um pai, com rosto desfigurado e quase sem dentes, mostra-nos com orgulho um filhinho recém-nascido. Ao lado, uma garotinha leva na cabeça um feixe de lenha para a mãe que já não tem as mãos. Irmã Maria Pia olha aquilo com benevolência e repete, com seu sorriso espontâneo e desarmado, que "aqui não é mais como antes".